O Nordeste negro

O sincretismo entre a negritude e nordesti- nidade dão o tom da exposição "Maracatus e Orixás", que o artista popular João Pedro do Juazeiro abre hoje, no Sesc Fortaleza

Foi em um meio de tarde, abafada, após o já tradicional engarrafamento da Avenida Duque de Caxias, que a equipe do Caderno 3 chegou à casa do artista popular João Pedro de Carvalho Neto, mais conhecido como, João Pedro do Juazeiro, que fica ali, no final da Rua Pedro Pereira, já perto do Colégio Estadual Liceu do Ceará.Casa simples, pintura amarela descascando, muro baixo, porta e janela. "É aqui!". E João Pedro abre logo as duas bandas da porta e, com um sorriso tímido-formal, vai fazendo os gestos de acolhimento, característico do povo do Cariri, e mostrando o ateliê apertado cheio de obras de arte. "Vamos entrando", e as mãos vão guiando o olhar do visitante para as obras de 95 x 65 cm, dependuradas em um cordão puxado rente à parede.Dez anos depois de ter deixado a terra de "meu Padim", como ressalta, continuamente, o ex-vendedor da famosíssima Pomada Milagrosa do Padre Cícero, cordelista e xilogravador, que vem propagando, com sua arte-vida, a cultura nordestina, João Pedro agora envereda por novas searas e apresenta, amanhã, às 18h30, no Sesc Fortaleza, a exposição intitulada "Maracatus e Orixás". Ela fica em cartaz até 4 de novembro.




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O orixá Oxaguian, na xilogravura de João Pedro do Juazeiro: obra presente em exposição aberta hoje, no Sesc Fortaleza. Artista recria repertório místico da Umbanda e do Maracatu 
RODRIGO CARVALHO


Pesquisa
"Como está o novo trabalho, seu João?" indago. "Seu João, não, porque se não eu vou pensar que eu sou velho", diz, bem humorado, o caboclo de 47 anos, fumante, que tenta ser discreto com a cicatriz vertical de uma cirurgia feita no coração, visível através do botão aberto da camisa social. E arremata.

"Olhe, vim para Fortaleza e aqui encontrei o Maracatu. Junto com Calé Alencar, passei a dançar e me veio a necessidade de fazer pesquisa sobre as origens afros. Me aprofundei na busca desse conhecimento e encontrei os orixás, na Umbanda. Fui buscar pessoas que tinham conhecimento dos fundamentos da Umbanda, e vi essa parte maravilhosa e envolvente, que não é o que alguns pensam ou trabalham com ela".

Enquanto mostra as grandes matrizes e impressões do Senhor Ogum, que em sua representação católica corresponde a São Jorge; o Senhor Oxóssi, com São Sebastião; Iansã com Santa Bárbara, e outros, João Pedro segue buscando explicações para esse universo simbolicamente talhado na madeira, com seu traço nordestinamente peculiar.

"Tem fusão, tem sincretismo. Se você prestar atenção, os deuses da mitologia grega são os mesmos da romana. E os afros são os mesmos das mitologias grego e romana. Comecei a trabalhar os orixás negros, mas também estou trabalhando os orixás brancos, com esse sincretismo religioso, que traz o orixá onde se ele torna branco. Venho há quatro anos fazendo pesquisas com um pai de santo maravilhoso, com historiadores da Universidade Federal do Ceará, e com alunos", detalha.

Enquanto ouvimos João, a companheira de vida há 22 anos, Célia (do Juazeiro), com jeitinho acanhado, olhos fortemente pintados, sorriso largo, traz para a roda cafés e cigarros. Sentamos todos. Os filhos do casal: Wallison, Wanderson e Willyane também estão por ali, trabalhando com o pai, o mais novo já casou e deu um neto a João e Célia.

Iconografia
"Cheguei em Fortaleza como vendedor ambulante, até que vi essa oportunidade de unir meus conhecimentos com vendas e a iniciação com a xilogravura. Vendia pomada Padre Cícero, que serve para dor de cabeça, inflamação, coceira, inchação, pé inchado. Subia e descia rua com a pomada milagrosa. Aqui eu passei a vender xilogravura e ministrar oficinas. O que me proporcionou mais desenvolvimento, porque, quando a gente ensina, a gente aprende. Porque eu sou um matuto, interiorano, quando cheguei aqui fui ministrar oficina para doutores, professores, alunos universitários. As exigências eram muitas, e me vi, mesmo como matuto, obrigado a me aprofundar na xilogravura", diz, João Pedro.

"Minha iconografia toda é nordestina. Trabalho a religiosidade do meu Padre Cícero Romão, porque sou afilhado dele, meu pai era afilhado dele e de Nossa Senhora das Dores. Não te disse? Em 1920, eles vieram de Pernambuco e meu pai foi batizado em Juazeiro, por meu Padim Ciço. Ele era romeiro pernambucano", confessa.

Pelos cálculos de João Pedro, a exposição "Maracatus e Orixás" é a primeira com o tema realizada através da xilogravura no Ceará. "Chegou o momento. Se você chegar na Bahia, tem orixás por todo canto, João Carybé fez orixás por toda a Bahia, tem escultura, pintura, gravura. No Ceará, não temos isso, mas é porque existe certo preconceito a respeito do culto de orixás. Mas toda humanidade cultua os orixás. Abaloaê é São Lázaro, Oxaguian é Jesus Cristo, então, que diferença existe nisso? Sou religioso, fiel e afilhado a meu ´Padim´ Cícero Romão. Mas o artista trabalha em toda existência do ser e, na xilogravura, tudo se grava. Deuses antigos foram gravados na madeira, na pedra, e os de hoje também podem ser gravados. Deus não quer ninguém sofrendo e acredito que existam anjos, energias que tomam contam de nós

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