Fernando Molica: Desfile de tolerância no Sambódromo

Fernando Molica é jornalista e escritor. E-mail: fernando.molica@odianet.com.br
Rio - Há uns 15 anos, o sociólogo Ricardo Mariano usou uma ótima frase para definir nossa peculiar relação com o sagrado: “Brasileiro gosta tanto de religião que uma só é pouco.” Ou seja, na hora de rezar, todo santo ajuda. Para desespero de xiitas de todas as religiões, o povo brasileiro, ao longo dos séculos, soube adaptar diferentes formas de falar com Deus. Nos nossos altares, sempre cabe mais um.
Esta relação foi, nos últimos tempos, abalada pelo radicalismo de algumas denominações evangélicas. Manifestações tão familiares como a veneração de imagens em igrejas católicas ou as incorporações de entidades em cultos afro-brasileiros passaram a ser classificadas como expressões do demônio. 

Todo mundo tem o direito de achar o que bem entender. O problema é que alguns mais exaltados, na ânsia de propagar suas verdades, passaram a ofender e até a agredir os que com eles não compartilhavam da mesma crença. Estes gestos são incompatíveis com a adorável tradição brasileira de respeitar os deuses alheios e até mesmo de tirar uma casquinha deles. Nenhuma fé é melhor que a outra; nem a ausência de fé pode ser julgada. Todos somos livres para acreditar e também para não crer.

De uns tempos pra cá, notícias sobre ataques a terreiros se tornaram mais ou menos comuns, passeatas em defesa da liberdade religiosa precisaram ser organizadas. Sobrou até para o samba: alguns bambas andaram se queixando que, por influência de pastores, muita gente decidiu se afastar das quadras, o gênero musical passou a ser visto como uma extensão das religiões de matriz africana.
Isso tudo justifica minha alegria ao, no domingo passado, assistir ao episódio mencionado ontem, aqui neste espaço, pelo Milton Cunha. Num Sambódromo lotado, mulheres com roupas usadas em cultos de umbanda ou candomblé engrossaram, emocionadas, o coro de ‘Faz um milagre em mim’, sucesso do evangélico Regis Danese, membro da Assembleia de Deus. Foi de arrepiar ver a bela canção sendo levada em ritmo de samba, acompanhada por vários percussionistas e pelo público. Aquele cortejo resgatou uma das nossas melhores características, como o respeito, a compreensão, a capacidade de absorver influências, a rejeição ao preconceito. A pista de tantos desfiles foi lavada pela esperança e pelo desejo de uma convivência pacífica e agregadora. A tolerância, assim como o samba, é nosso dom.


imagem arquivo do blog

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