Ciganos Portugueses - Um Retrato Demolidor do Racismo em Portugal; in SOS RACISMO

Lugar de partilha

«Num estudo de 2001, o SOS Racismo assinalava, como mais correntes, os seguintes estereótipos e preconceitos relativamente ao povo cigano: sujos e com má aparência, metem medo, não trabalham, praticam negócios ilícitos, são ladrões, provocam conflitos, vivem à custa do rendimento mínimo, têm casas oferecidas, enquanto “nós” temos que trabalhar muito para ter as nossas, destroem as casas que lhes dão, não se adaptam às normas sociais, criam problemas de vizinhança (barulho, violência e criminalidade), são agressivos, não vão à escola a não ser para ter direito ao rendimento mínimo e provocar desacatos.

Toda a gente, nos mais variados locais do país, conhece histórias do “burro à janela do quarto-de-banho”, de banheiras transformadas em hortas, das fogueiras no meio da sala de estar, alimentadas com os tacos de madeira do chão, de matanças do porco no vau das escadas, etc., etc.... Ninguém presenciou, ninguém foi testemunha directa de algum desses acontecimentos, mas são “factos incontestados”, são “atitudes recorrentes” onde quer que seja. Toda a gente sabe... ‘eles são assim’!...

Generalizamos, por indução, a partir de relatos de fidelidade duvidosa; alimentamos o estereótipo que nos permite distinguir os NÓS e os ELES, assegurando a identidade e diferenciação dos grupos, “a pureza” das NOSSAS atitudes e comportamentos e reforçando a NOSSA auto-imagem e auto-estima; segregamos, evitando o convívio “por (in)segurança”; mantemos o preconceito por total ignorância.

Um estudo realizado no início da década de 90, revelava que, na Grande Lisboa, as habitações da população cigana careciam de: água (68%), electricidade (44,6%), banho (75,9%) e sanita (60,7%) (Bruto da Costa & M. Pimenta, 1991).[1]
O mesmo estudo, contrastando com as habituais narrativas de faustosidade das barracas..., afirmava que 88,4% não possuíam esquentador, 66,1% frigorífico, 98,2% aquecimento, 92% máquina de lavar a roupa e 32,1% não tinham fogão a gás.

Continua a prevalecer, no senso comum, a ideia de que os ciganos são nómadas. Todavia a realidade actual nada tem a ver com a imagem lírica da família cigana, na carroça puxada pelo burro, pela estrada fora, conduzida pelo patriarca e seguida de perto pelo cão. A História, naturalmente, encarregou-se de os encostar à berma... Hoje, em Portugal, como já há muitos anos, os ciganos são sedentários. A estrada é somente um meio para chegar à feira. O burro e a carroça foram substituídos pelo carro.

Se o acesso a trabalhos estáveis se tem revelado uma miragem, as condições de habitação continuam a ser um problema. “(...) As graves situações de carência encontradas nas outras minorias étnicas imigradas até pareciam relativamente confortáveis (embora não o fossem) quando comparadas com a situação desta minoria étnica portuguesa.
Como referimos anteriormente, para extrapolarmos para a globalidade das minorias étnicas, falta-nos um indicador, para cada uma delas e, neste caso, para os ciganos, sobre a percentagem dos que viviam neste tipo de condições, em relação aos que delas de algum modo escapavam, o que de nenhum modo diminui a gravidade extrema das condições de habitação detectadas nos lares ciganos”.[2]

A escola, que se pretende inclusiva, multi/intercultural e sociabilizadora, também não tem cumprido as suas funções, em resultado das políticas educativas implementadas. Relativamente à escolarização das crianças ciganas, podemos constatar, de acordo com os números do Banco de Dados do Secretariado Entreculturas, o seguinte: “no 1.º Ciclo do ensino oficial, relativamente ao ano lectivo 1997/98, registava-se a frequência de 5.420 alunos [ciganos], dos quais apenas 856 frequentavam o 4.º ano, ou seja, cerca de 15.8% dos inscritos. No ensino Secundário, apenas se verificavam 16 inscrições e destas, apenas 2 se referiam ao 12º ano. É baixa a percentagem de alunos inscritos, admitindo que cerca de 20.000 estariam em idade escolar.
Uma observação dos números relativos aos 6 anos lectivos possíveis (1992 a 1998), revela uma panorâmica sensivelmente semelhante, mesmo tomando em conta o número absoluto de crianças ciganas inscritas nos anos de transição e que, para o último ano do 1.º Ciclo, evoluiu de 620 para 856 inscritos com uma taxa de sucesso que nunca ultrapassou os 69.5 % (em 1992/1993) e foi inferior a 56 %, em 1997/1998, ano em que a taxa nacional atingiu praticamente os 88%.
A quebra do número médio de inscrições entre os que completaram o 4.º ano e o 6.º ano chega, em 1997/98, aos 87.8%, quer dizer, só 1 em cada 8 alunos dos que fizeram a chamada 4.ª classe, passou para o 2.º Ciclo.
Nos 6 anos, quando chegamos ao final do 2º Ciclo – 6.º ano, a média anual de inscritos é apenas 67, representando somente 16 % dos que concluíram o Ciclo anterior com aproveitamento (423). No entanto, as taxas médias de aproveitamento dos alunos que continuaram (51) são mais elevadas em relação ao 1.º Ciclo, chegando aos 76.9%, muito próximas dos valores apurados a nível nacional. (...)
No 3º Ciclo, a média anual de inscritos é ainda mais reduzida: 11.6 alunos; as desistências são de 2.3; e os sem-aproveitamento limitam-se a 0.5 ano. Percentualmente a correspondência é a seguinte; ultrapassaram o Ciclo 75.7% dos inscritos, desistiram 20% e ficaram sem aproveitamento os restantes 4.3%.
Houve portanto, uma quebra da média de 51 alunos/ano [com aproveitamento] que concluíram o 2.º Ciclo, para 11.6/ano [inscritos] que frequentam o 3.º Ciclo. Ou seja, em cada 4 alunos ciganos que frequentaram [com aproveitamento] o 6.º ano só 1 passou a frequentar o 9.º ano.
A presença de jovens ciganos é mais acentuada no 1.º Ciclo, seguido de diminuição muito acentuada na transição de cada um dos níveis de escolaridade subsequentes”.[3]
A este propósito diz Carlos Jorge: “a educação do menino cigano (...) gira em torno da sua família unidade básica da organização social, onde os fracassos e/ou insucessos são vividos como experiências a serem incorporadas nos seus saberes experienciais. A família está sempre presente e transmite-lhe toda a segurança e bem-estar possível (...) [sendo] fonte inesgotável de afectos compreensão e apoio. (...) A educação é permanente, o que significa que para os ciganos não existem momentos para aprender, para brincar ou trabalhar. (...) Os pais desconfiam da escola, da sua função educativa (...). Se o papel da instituição escolar é formar para o trabalho então o que se verifica é que a criança cigana que frequenta a escola é separada das aprendizagens necessárias ao exercício da sua profissionalidade”.[4]
Parece ser claro para todos o desajustamento da escola face ao povo cigano. A instituição escolar e os curricula menosprezam os seus saberes e vivências, condenam a sua língua, hábitos e tradições, considerando-os anacrónicos, bárbaros e marginais. A escola não sociabiliza, confronta, agride, impede o crescimento social e humano.
Que sabe a escola sobre os ciganos? Nada! Que dizem os currículos e os diferentes manuais escolares sobre eles? Que histórias contam? Que tradições narram? Nada! Não existem!... A não ser nos queixumes de alguns (maus) educadores.
Os ciganos “não se querem integrar”, “auto-excluem-se” e alimentam a imagem de “coitadinhos”; “acusam os outros de racismo, mas eles são os mais racistas”!
“Os dados sócio-económicos e atitudinais respeitantes à minoria cigana são absolutamente congruentes com os dados escolares inicialmente analisados e com as hipóteses culturais e identitárias aventadas. Partindo desta base sócio-económica e da falta de expectativas positivas quanto ao futuro o insucesso escolar massivo torna-se inevitável. O processo de aculturação antagonista e a reacção xenófoba (ou, na «melhor» hipótese, de indiferença) que tende a suscitar potenciam tanto o insucesso escolar como o choque cultural dentro e fora da escola e, certamente, também nos bairros em que constituem a minoria étnica mais pobre (e socialmente ignorada pelos poderes estatais e não só). O processo de adaptação sócio-cultural, contraditório com a estratégia histórica de aculturação antagonista, permanece bloqueado e esse bloqueio (escolar, sócio-económico, cultural e político) reforça a própria estratégia de aculturação antagonista, como única maneira viável de salvar a face e defender a honra do grupo.

Entre a invisibilidade social inerente à pobreza e à exclusão social e a excessiva visibilidade negativa decorrente da estratégia de aculturação antagonista potenciada pela generalidade dos media, os ciganos portugueses permanecem como a mais grave e escandalosa de todas as situações de racismo e xenofobia registadas em Portugal.” (Pereira Bastos et al.)

O SOS Racismo, em parceria com a APODEC, na sequência do estudo realizado, desenvolve presentemente um projecto de promoção do Povo Cigano nos domínios da educação e da empregabilidade. O referido projecto visa, por um lado, responder às necessidades de formação académica e profissional dos jovens e, por outro, apoiar a procura de saídas profissionais.
Um dos eixos centrais do trabalho desenvolvido tem a ver com o combate às desigualdades de género, preparando as famílias e as jovens raparigas para uma intervenção activa nos domínios social e profissional.

O trabalho com as comunidades ciganas tem-nos mostrado aquilo que já sabíamos: o estado, através dos organismos competentes, não manifesta qualquer preocupação com as minorias e não desenvolve qualquer esforço para a sua promoção e integração. Sem querer ser injusto para com alguns exemplos, ainda que episódicos e desconexos, de boas práticas de âmbito sócio-cultural, as políticas de integração social das minorias até agora dominantes continuam a nortear-se pela máxima obsoleta que recomenda: “Em Roma sê romano!»"


Comentários