Uma banda cigana contra o horror à liberdade


O Gogol Bordello retrata em suas letras seu estilo nômade e libertário
Eles vieram de Israel, Ucrânia, Rússia, Romênia, China, Etiópia, Equador, Escócia, Tailândia, Japão, e se reuniram em Nova York, na forma de um grupo musical. O Gogol Bordello, criado em 1999, se apresenta como uma banda cigana, mas é, em igual ou maior medida, um núcleo que transforma em canção as agruras dos imigrantes num país como os Estados Unidos – ou outro qualquer.
No vídeo recente de Immigraniada (We Comin’ Rougher), o líder da trupe, Eugene Hütz (nascido Ievguêni Alekssandrovitch Nikolaiev Simonov, em Kiev), aparece caracterizado sucessivamente como lavador de para-brisas de carros em sinal de trânsito, operário de linha de produção em fábrica têxtil e lavador de louça de cozinha industrial. Ao mapa dos EUA, que aparece pintado em vermelho-sangue no ínicio, vão se somando os mapas também ensanguentados dos países de origem de cada personagem do clipe. No final, aparece a inscrição “nenhum ser humano é ilegal”, assim como o endereço virtual de uma página sobre direitos de imigrantes no site da ACLU (sigla em inglês para a União Norte-Americana de Liberdades Civis).
Immigraniada é uma das faixas do novo CD do grupo, Trans-Continental Hustle, o primeiro bancado por uma multinacional (a Sony Music), e lançado também aqui no Brasil. A letra fala sobre bombas de gás lacrimogêneo e conta que “minha família está dormindo num trilho de trem”. Nesse compasso, evolui, fluentemente, a música teatral do coletivo de imigrantes, cujo nome faz referência ao escritor Nikolai Gógol, conterrâneo e influenciador de Hütz, um músico que peregrinou por Polônia, Hungria e Áustria e se radicou nos EUA em 1993.
Para ouvidos habituados ao pop ocidental de matriz anglo-americana, o Gogol Bordello é uma banda de punk rock nos moldes do grupo britânico The Clash e dos australianos Nick Cave & The Bad Seeds, com ecos do folk-blues-rock-cabaré do norte-americano Tom Waits e, de vez em quando, do reggae jamaicano de Bob Marley & The Wailers.
Mas a babel entra em cena a partir das referências à música cigana do Leste Europeu, ao flamenco dos Gipsy Kings, ao caldeirão étnico de grupos como Mano Negra (do franco-espanhol Manu Chao) e Les Négresses Vertes – e até a algumas pitadas de música popular brasileira. In the Meantime in Pernambuco é o nome de um dos rocks do disco, e a faixa-título bate idiomas no liquidificador em versos como “Iglesia de la calle, transcontinental/ Cigano urbano, maracatu rural”). Os violinos e o acordeom (que ecoa à distância um “cigano do povo de Deus” pernambucano chamado Luiz Gonzaga) enfeitam exuberantemente o punk de feições às vezes um tanto conservadoras (o rock é hoje um quase-sessentão, não faz mal lembrar).
Vida nômade
Se os direitos dos imigrantes aparecem como bandeira na obra audiovisual do Gogol Bordello, eles são apenas a ponta de um imenso e fascinante iceberg. As canções da banda tratam de uma realidade muito conhecida por artistas em geral, embora não tão frequentemente explicitada pela maioria deles: o nomadismo. Poucos sabem tão bem quanto um músico, ainda que não seja cigano de sangue, como é a vida na estrada – “Cada porto um amor/ Em cada amor um adeus”, como cantava Rita Lee em Pirata Cigano (1982).
A instabilidade da vida cigana está documentada em muitos versos (em inglês) espalhados por Trans-Continental Hustle. Acontece em “O amor rebelde mendiga de porta em porta/ (…) Em breve você será encarcerado”, de Rebellious Love. Atravessa o “Arame farpado invisível/ Ao redor do pescoço da minha canção”, em Last One Goes the Hope. Perfura a poesia de Break the Spell: “Só porque vim de um campo de refugiados/ Me colocaram numa escola para doentes mentais”.
“O primeiro êxodo me levou ao Marrocos/ Mas o segundo êxodo me deixou na sarjeta”, afirma Uma Menina, que transcorre em português-inglês-espanhol (“Uma menina, uma cigana/ I’ve met on Mercada Uruguaiana”) e termina sonhando com passarinhos “livres nas sarjetas do céu” – de novo, o Luiz Gonzaga de Assum Preto, Asa Branca, Sabiá e Acauã sobrevoa a mente de um ouvinte brasileiro.
Globetrotters
Bando de pássaros nômades, o Gogol Bordello se resume em dois versos (em inglês) de Raise the Knowledge: “A revolução é interna/ A evolução ainda não está concluída”. Liberdade, vida errante, nomadismo, alegria cigana são as palavras-de-ordem que o grupo transfunde do planeta afora para o chamado “coração da América”. Hereges, ousam preconizar um mundo em quase tudo diverso do chavão capitalista-moralista-religioso que há séculos dopa corações e mentes centrifugados pelo way of life estadunidense.
“Somos os ‘globetrotters’ originais, sem armas nas mãos”, alfinetam em Break the Spell. É ou não é eloquente que as armas (não) empunhadas por gente como os Gogol Bordello assustem governos e mentalidades tão mais que golpes de Estado nas Américas Central e do Sul ou o emprego satisfeito da tortura em Guantánamo pela “pátria da liberdade”?
E, se é possível extrapolar a vida “real” para a música, caberia ainda perguntar: qual é o monstro escondido dentro do armário da recente expulsão dos ciganos pelo governo francês? Seria a repulsa a “vagabundos”, “facínoras”, “ladrões de criancinhas”, bichos-papões? Ou seria o mero, vulgar e imemorial horror humano à liberdade?



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