CONTO CIGANO


Numa noite já esquecida de um verão dos meados da década de sessenta, em Miranda do Douro, uma desordem grave nas imediações de um acampamento de ciganos provocou um morto e vários feridos. A GNR teve de intervir. Houve prisões, fugas para Espanha e juras de vingança. Um dos feridos, um cigano espanhol já idoso, foi internado no hospital, com um guarda à porta da enfermaria para impedir que fosse molestado pelos que lhe juravam pela pele, numa acção de rotina decidida pelo tenente Quirino da GNR local.
O velho cigano é que ficou eternamente agradecido, Convenceu-se mesmo que o tenente lhe salvara a vida e, sempre que se deslocava de Espanha a Miranda, normalmente nos dias de feira, lá ia ele ao posto da GNR convidar o tenente para ir almoçar uma "posta à mirandesa" ao acampamento cigano em Torregamones, aldeia espanhola raiana, do outro lado do Douro.
O tenente foi resistindo, mas, um dia lá foi. Num domingo qualquer pôs-se a caminho atravessou o rio e almoçou com o cigano e com a família dele. A mulher, velha cigana espanhola de pele enegrecida e engelhada e quatro filhas. Três rapariguitas magríssimas de idade indefinida e uma mulheraça morena e trintona de enormes e letais olhos negros, de traços faciais marcados, onde sobressaíam um elegante nariz aquilino e uma sensual e tentadora boca de lábios carnudos. O tenente até sentiu um estremeção quando encarou a cigana.
– Esta é a minha filha Cármen. Ficou viúva há mais de dez anos e agora vive comigo. Lê a sina nas feiras. Qualquer dia vai à feira de Miranda!... – disse o velho, quando os apresentou.
O certo é que o tenente não mais conseguiu tirar os olhos de cima da viúva. E ela notou, claro. Quirino gabou muito o molho da ”posta”, especialmente saboroso.
– Essa é a especialidade da Cármen – esclareceu o velho – É um espectáculo!...
A cigana olhou de frente para ele e sorriu. O tenente deixou-se afundar nos grandes lagos negros, ao som de castanholas que ele, mais tarde, juraria que ouviu. Estava perdido.
Quando uns dias mais tarde, na feira de Miranda, a procurou e encontrou, teve início um romance que lhe consumiu a vida durante muito tempo. É que ela também praticava as artes da bruxaria e com isso infernizou o desgraçado que só por envenenamentos foi parar ao hospital seis ou sete vezes.
Cármen era conhecida, em Miranda, pela cigana do tenente. Mais tarde pela cigana do capitão, etc. Ia sendo “promovida”…
Tudo terminou quando, de uma cadeia espanhola, foi solto um cigano pestanudo que, vinte anos atrás, tinha sido condenado pelo assassinato do marido dela… Foi procurá-la, encontrou-a e fugiu com ela.
Consta que se fixaram na Andaluzia onde faziam o circuito das feiras.
Do tempestuoso relacionamento do tenente Quirino e da cigana Cármen, só resultaram duas coisas boas: um filho, um “Paco Qualquer Coisa” que o cigano homicida rejeitou e que hoje é bandarilheiro nas praças espanholas de segunda categoria e um molho especial para tempero da “posta à mirandesa” que a cigana Cármen ensinou ao tenente e que ele ainda hoje, já reformado (e safo da cigana…), faz com mestria assinalável.
Mas o molho tem segredo. Tem um bruxedo qualquer que ele não pode revelar, por medo de ir parar outra vez às urgências com falta de ar e a vista turva. Os bruxedos das ciganas espanholas são perigosos e letais. Mas que o molho é um espanto, lá isso é! E eu posso dizê-lo porque já o provei. E ainda espero repetir…

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